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Tecendo

Cresci sem meu pai. Não fazia parte dos meus dias. Mas meu cabelo é preto e grosso, minha cara redonda, meus olhos rasgados, minhas pernas tortas, minha pele amarela. Cresci ouvindo tudo isso. Hoje me dizem que isso tudo é nem tanto. No entanto, por ser a única em casa, na rua, na escola, no bairro, até certo ponto, era tudo.  Não é que eu fosse tudo isso. Boa parte não era. A que não era, era onde eu era. É que mesmo cortando laços, encontros e carne, eu mesma não me divido.

Era a cidade

O que faço com o horizonte que vejo todos os dias? A verdade é que ele não cabe no meu peito E dói tentar colocá-lo aqui dentro Ou aceitar sua imensidão Porque meus olhos que já estão acostumados A enxergar até os prédios, avenidas, pequenas luzes e nuvens cinzas

Redhead

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 Na primeira vez que ele a viu, a luz do sol brilhava sobre seus cabelos ruivos. Tudo lento, completando a cena como num filme. Contava essa história repetidas vezes, principalmente nos encontros de ar e fogo. Os dedos passavam com muita força subindo pela nuca, antes de partirem para outras regiões. Marcava o celular. Havia um ano. Estava em frente ao espelho e não se via mais assim. Não queria perdê-lo. No entanto, a raiz persistente mostrava o castanho, como a terra haveria de ficar quando úmida. Algo queria germinar. Já passava da hora de parar de cobrir os fios. Foi ao banho. Decidiu deixar sair dali o que não poderia mais camuflar.

A despedida

Caixas fechadas Roupas dobradas Malas feitas Banho tomado Despeço-me da minha casa Sabendo que faço de qualquer lugar meu lar Sei que lá hei de encontrar E que aqui deixo partes de mim Nas paredes, móveis, chão e ar Carrego comigo a morada da paz A lua que me deu boas vindas  Pela porta da varanda Brilha intensa  E abraça minha partida E meu drama

Café

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Fim da primeira xícara de café que tomo na vida (desde que aprendi a dizer não). Eu não bebo café. Tinha também o péssimo hábito de me esquecer de oferecer aos visitantes. Erro em nossas terras. Não se preocupem. Juro que me esforço para não cometer mais a gafe... Por mãos generosas, ganhamos diversos utensílios para fazer diferentes versões da bebida, que agora faz parte da rotina do lar nos encontros esporádicos. E hoje, por que não um meu? Feito. Sem açúcar. É desta forma que me encanto com os chás. Meu corpo ficou arrepiado. "Nesta idade arrepio não é mais de frio", me disse um primo em certeiro dia. Meu hálito fez-me lembrar da minha mãe nas tardes passadas dos finais de semana. Os lábios, sentidos com a ponta da língua, me levaram até os jovens suecos nas noites e cais, com as bocas ressecadas pelas drogas. Intenso, curto, amargo, seco. Quanto ao futuro, seria possível tirar daí alguma previsão?

No mar

Cai a noite, sobem as estrelas. Segue cautelosamente em mar aberto. Canta a música da partida e do medo. Um misto de saudade e vontade. Não lhe bastam as árvores, nem a umidade por entre os pés na madeira fina, ou o balançar hipnótico das ondas pelo seu corpo. Os olhos se perdem no horizonte. Quer abrir caminhos que não deixam marcas, saciar a fome de sal, desvendar segredos profundos. Vai pelas águas. Água. No mar. Águas. Terra! Ele clama. Preciso! Já não há. Está todo tomado. Nas suas veias. No suor que escorre. Na saliva aquecida. Na extensão de si. Tudo é água. Assim, não ficou lá, nem cá. Desfez-se em lágrimas durante a travessia.
Quebrar o quinto metatarso, romper os ligamentos e até as enxaquecas da madrugada não foram comparáveis com o período do pós-operatório. Osso, pele, carne e nervo precisamente cortados. Nos primeiros dias a dor me trazia imagens dos feridos de guerra dos filmes, aqueles coadjuvantes que ficam gritando na maca suja com a falta de um membro. O fundo da cena se acendeu em mim. Eu era a coadjuvante e meu grito não me fazia me sentir mais viva. Conviver com a dor. Dor constante, por horas, dias, semanas, meses. Isso me roubou de eu mesma. A vontade de comer, saber o que eu gosto, me concentrar em qualquer ideia ou atividade. Nem corpo nem mente estavam em mim. A dor me tirou tudo isso. A dor levou alguns quilos que me compõem embora. Eu fui com eles. Foram necessários mais de dois meses até eu conseguir me ver de novo. Sentir o sangue correndo em minhas veias. E em cada respiração uma pequena parte se preenchendo. Me percebi no desejo acordado de ler o mundo.